sexta-feira, 6 de novembro de 2015


A GAGUEIRA DE MOISÉS
(TRADUÇÃO-CRIAÇÃO NA BÍBLIA,
NO TALMUD E NO ZOHAR)

Moacir Amâncio1
RESUMO: O uso do mesmo termo hebraico para tradução e comentário (targum) permite
uma aproximação entre a cultura rabínica e idéias da crítica contemporânea, como a morte
do autor, substituído pelo leitor. Na prática, a discussão e análise dos textos realizadas por
gerações de rabinos formaram um conjunto de novos textos que parecem desconhecer os
limites entre a leitura e uma nova criação literária. O resultado é uma realidade literária
dinâmica e estimulante, que coloca o leitor atual a repensar seu papel, que nessa
perspectiva deve ser ativo, transformando-o num co-autor – condição idêntica à do “autor”,
que também se torna um co-autor por definição.
PALAVRAS-CHAVE: tradução, Bíblia Hebraica, Talmud, comentário, leitura.
ABSTRACT: The use of the same Hebrew term for translation and commentary (targum)
permits an approximation between the rabbinic culture and contemporary critical ideas,
like the death of the author, replaced by the reader. In reality, the discussion and analysis
of the texts done by generations of rabbis formed a combination of new texts that appear to
ignore the limits between the “reading” and a new literary creation. The result is a dynamic
and stimulating literary reality that impels the actual reader to rethink his role, that in this
perspective should be proactive, transforming him or her into a “co-author”.
KEY WORDS: translation, Hebrew Bible, Talmud, commentary, reading.
Fazer uma tradução e produzir um texto supostamente original se articulam
num só esquema, mas nessa órbita, por acaso, não se destacaria sobretudo o leitor,
a figura primordial em confronto com a Babel externa e interna? Toda escrita
redunda no escrever a própria leitura (BARTHES, 1992, pp. 33-36). É como se,
para dar espaço à expressão dos textos, filtro de outros tantos textos e idiomas
diversos, o escritor, então sempre um tradutor, fosse condicionado a uma espécie
de encolhimento do “seu” idioma básico: o novo texto somente será possível com a
presença sutil ou avassaladora de outros tantos textos e línguas. Num processo que
lembra o encolhimento de Deus ao criar o mundo, de acordo com a teoria
cabalística de Isaac Luria (SCHOLEM, 1989, pp. 117-122). A comparação vai
mais longe se lembramos que, de acordo com os midrashim, o conjunto da
homilética rabínica, quando Deus, ao criar o universo a partir de um texto
precedente e lançou a Si próprio e o homem num exílio permanente, só remido no
limite pelo vislumbre do restauro. Na Cabala luriânica, a integridade foi perdida
com a quebra dos vasos primordiais incapazes de suportar a luz superna dentro
1 Professor Doutor de língua e literatura hebraica na Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).
Graphos. João Pessoa, Vol 11, N. 2, Dez./2009 – ISSN 1516-1536
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deles. Recuperar as faíscas dispersas através dos próprios atos é a missão humana,
o restauro, mas um restauro errante, diga-se. Existem vários caminhos. A opção
aqui volta-se sobretudo para o círculo da mística da linguagem, de onde emanam
por sua vez outras possibilidades abertas à pesquisa e à imaginação. Pode-se
acrescentar mais um dado que nos levará a uma ampliação desse círculo, para
tentarmos esboçar algo que lembraria uma teoria rabínica do texto via traduçãocomentário
– muito anterior a Benjamin e à Cabala medieval, anotando que
deveríamos nos lembrar o tempo todo, como em subplano prestes a emergir, que
isto implica um claro fazer poético.
De modo análogo ao encolhimento divino (tsimtsum)2, o “autor” “suprime”
o próprio texto engastando-o em outro através do comentário, como temos nos
midrashim, ao estabelecer o vínculo entre o fato da hora e o texto bíblico, que
permite “entendê-lo” e ao mesmo tempo o incorpora, com os condicionamentos
históricos, ao discurso divino. Quanto à “tradução”, o processo é mais evidente –
só o recuo do texto do próprio tradutor abrirá espaço para o texto que chega, sendo
que este será incorporado àquele. Flusser usa o termo “aniquilar”, mas a vibração
de seu pensamento redesperta a idéia luriana:
“...a possibilidade de tradução é uma das poucas possibilidades,
talvez a única praticável, do intelecto superar os horizontes da
língua. Durante esse processo, ele se aniquila provisoriamente.
Evapora-se ao deixar o território da língua original, para condensarse
de novo ao alcançar a língua da tradução. Cada língua tem uma
personalidade própria, proporcionando ao intelecto um clima
específico da realidade”. (FLUSSER, 1963, p. 51)
Em suma, a tradução deve fazer o que o texto escrito diretamente no idioma
também faz, ao detectar um “clima específico da realidade” atual do comentário,
assim visto como a realização do Texto – não nos esqueçamos que a grande
configuração do leitor-tradutor está na consulta divina à Torá, da qual surgiu o
universo. O traduzir, o comentar reproduzindo distorcidamente o texto anterior, é a
mesma busca da revelação, ainda mais quando trabalhamos um idioma de noites
tão antigas quanto o hebraico. Falando a partir do português, ou do inglês, na
situação inversa, o hebraico se confronta com possibilidades a serem incorporadas
ao seu potencial – e muitas vezes é apenas uma volta, pois conceitos fluentes em
2 Tsimtsum, “concentração”: A fonte básica desta doutrina é encontrada num antigo
fragmento do círculo do Sêfer há-Iyun (prefácio para um comentário sobre “os 32
caminhos da sabedoria”, em Ms. De Florença) que fala de um ato de contração divina que
precedeu as emanações: ‘Como Ele produziu e criou este mundo?’ Como um homem que
toma e contrai (metsamtsem) o fôlego (Shem Tov b. Shem Tov tem:: ‘e Ele se contrai’), de
maneira que o menor poderia conter o maior, de maneira que Ele contraiu Sua luz na
largura de uma mão, de acordo com Sua própria medida, e o mundo foi deixado na
escuridão, e naquela escuridão Ele cortou matacões e rachou pedras”. SCHOLEM, G.,
1989, p. 117.
A Gagueira de Moisés (Tradução-Criação na Bíblia, no Talmud e no Zohar)
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muitos idiomas estão à espera dessa teshuvá (retorno) para recuperarem a sua
dinâmica estelar. Os termos interagem e esplendem.
Cada autor-tradutor escreverá-lerá o mesmo texto de maneira diferente. Em
suma, estamos tratando de interpretação e é a partir daí que seguiremos, lembrando
que traduzir e “criar” pressupõem a interpretação de dados anteriores. O escrever,
ou o traduzir, escrever de segunda-mão, digamos assim, implica sempre um
movimento interpretativo. E interpretação tornou-se praticamente um sinônimo de
Judaísmo, como se sugeriu acima: às migrações territoriais se sobrepõe a supermigração
dos textos. Basta lembrar a palavra hebraica para Fariseus, Perushim.
Perush quer dizer isso mesmo, comentário, interpretação, além de separar. Os
adeptos da seita dos Perushim, à época do Segundo Templo, estavam convictos da
validade da Lei Oral e se encarregaram de detectar seus vínculos com a Torá de
Moisés. Mas já ao tempo de Esdras e da Grande Assembléia a questão se colocava
de modo evidente dentro do campo de nosso interesse. Ou seja, da tradução, a
criação literária, poesia. Com o retorno do exílio na Babilônia, surgiram também os
intérpretes da Torá, então escrita em novos caracteres que formam o que se chamou
o hebraico quadrado (de origem babilônica), substituindo a escrita antiga, ainda
percebida nas Escrituras dos samaritanos, a seita israelita provável remanescente do
reino do Norte, em oposição a Judá, ao Sul.
Pois bem, a leitura da Torá viria, com o tempo e a redução do hebraico
enquanto idioma falado, seguida da respectiva tradução do texto, no caso para o
aramaico, língua em que encontramos versões clássicas da Bíblia Hebraica, sendo
que duas delas acompanham o texto original nas edições tradicionais, destinadas ao
exercício do preceito de estudar, ou seja, de interpretar a Torá, imposto a todo
judeu. Estudar, isto é, interpretar a partir dos textos, das idéias, das interpretações
anteriores, tanto das traduções como das explicações de comentadores como o
rabino Shlomô Itshak, o Rashi, Ibn Ezra, Sforno e outros que contornam o texto
hebraico (visto como uma totalidade inextrincável) ao modo de uma cerca, uma
cerca que no entanto abre o campo de visão, em vez de restringi-lo. São traduções
pessoais para cada época e lugar3. De palavra a palavra temos Rashi e Ibn Ezra.
Sforno cintila ao fazer com que o fluxo da história se ilumine à luz da Torá. Nele
insinua-se, muito a propósito, uma celebração da mistura das línguas não como
castigo, mas como bênção. Pois esse rabino italiano dos séculos 15-16 interpreta o
episódio de Babel como uma parábola sobre o que poderíamos chamar de
homogeneização e o totalitarismo tecnológico permitido também pela existência de
um só idioma, processo que seria barrado pela cisão babélica. Em vez do
totalitarismo aplicado à palavra que teria sentido unívoco, o incontrolável da
errância. No ato de traduzir está a busca de compreensão tanto do outro como de si
mesmo, um esforço derridiano (com Levinas) de solidariedade, em que o ser
humano reconhece o estrangeiro tanto no outro – o aher – como em si, abrindo-se
3 Rashi viveu na França, no século 10 e é o grande explicador medieval do Pentateuco e do
Talmud. Ibn Ezra, no séc. 12, destacou-se como poeta, gramático e explicador do
Pentateuco. Ovadia Sforno viveu na Itália.
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ao conhecimento recíproco, universal e individual – sem esse não há aquele e viceversa
– podemos sentir aqui os olhares de Buber e de Benjamin, a presença do vaso
em constante restauro, o tikun4.
Um restauro na direção inversa a Babel, que se distanciava do humano na
medida em que a torre era construída num mundo onde, segundo os rabinos, o
tijolo valia mais do que a vida humana – o corrigir numa divergência com a criação
divina primitiva. A tarefa do tradutor não seria montar paredes, mas retirar os
tijolos, as pedras de cada parede, abrindo espaços. Ou seja, traduzindo-explicandointerpretando
cada peça removida para seu público-ele mesmo. Porque a palavra
targum em hebraico é tradução e também explicação, ou perush5. Os amoraim,
explicadores das palavras dos mestres da Mishná (tanaítas), a Lei Oral, foram os
sábios intérpretes dos tanaítas e dos sentidos da Lei Escrita6. Essas explicaçõestraduções-
interpretações multifacetadas vêm expressas em debates, parábolas,
poemas, ou seja, em novas peças de criação, por sua vez à espera de novos leitoresintérpretes-
tradutores, que se encarregarão de procurar outras possibilidades nessa
máquina de produzir sentido movida por escritores sem conta e tantas vezes sem
nome.
Porque, judaica e borgeana, a realidade é o livro a ser relido. E nunca é
demais lembrar que em hebraico a palavra davar significa tanto palavra quanto
fato, coisa, substância, diferindo do termo grego logos, referencial. Davar é palavra
e coisa, embora não exatamente tangível, em relação à qual o homem e mesmo
Deus se põem em exílio insolúvel frente à palavracoisa: quando Deus fala, a
palavra dá origem à coisa e se alheia. O Midrash Rabá, logo nas primeiras páginas,
compara o poema supremo da criação do universo ao trabalho de um Artesão, um
Artista, que segue um plano e esse plano não é outro senão a Torá, precedente ao
que seria criado7: “A Torá diz: ‘Eu fui a ferramenta do Santo, bendito seja Ele.’ Na
prática humana, quando um rei mortal constrói um palácio, ele não o constrói com
sua própria habilidade, mas com a habilidade de um arquiteto. O arquiteto, além
disso, não o constrói a partir de sua própria cabeça, mas utiliza planos e diagramas
4 De acordo com a Cabala, quando o universo foi criado, uma das Sefirot (emanações) não
suportou sua da luz e quebrou, espalhando seus recipientes, “vasos’ (kelim) que baixaram
ao mundo da Criação, mas sem as luzes. O Criador poderia ter restaurado tudo, mas neste
caso, a opção foi permitir ao homem tomar parte no reparo, no tikun do mundo. (Este
resumo é baseado em Afilalo, Raphael, Kabbalah Dictionary, pp. 80-81
5 Em português também se entende traduzir por explicar, mas sem a riqueza e a referência
de tradição, como temos na cultura judaica. Se quisermos ir mais longe nas línguas
semíticas, podemos lembrar que em ugarítico rgm produz os verbos falar, informar, e o
substantivo palavra. Ou seja, na raiz da palavra está a tradução.
6 Mishná, estudo, repetição, também designa a Lei Oral judaica. Essa lei foi registrada no
segundo milênio da era comum por Iehudá haNassi, em hebraico. Discussões em torno dos
detalhes da Lei Oral, nas academias rabínicas, em aramaico e citações em hebraico seriam
por sua vez também registradas, formando com a edição do conjunto, os dois Talmudes, o
Babilônico e o Jersolomita.
7 O Livro da Criação diz que Deus criou as letras, propondo uma interessante pergunta.
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para saber como dispor câmaras e aberturas de portas. Assim, Deus consultou a
Torá e criou o mundo. Quando a Torá diz, ‘No início Deus criou’ (1:1), início se
refere à Torá, como no versículo ‘O Senhor me criou no início de Seu caminho’
(Provérbios, 8:22).” E como foi escrita a Torá? Não é o Midrash Rabá, mas o
Midrash Tanhuma, outra coleção de textos rabínicos, que nos diz, após informar
que ao criar o universo Deus se aconselhou na Torá, grafada “sobre fogo branco e
fogo negro”, ou seja, o fogo branco e o fogo negro de todos os conteúdos, de todos
os sentidos implícitos nas coisas, nas palavras deste mundo a ser lido, relido,
traduzido e reescrito com os recursos da possibilidade relativa de criação, em outra
palavra e de novo, da poesia, do lavrar, do labor, do fazer humano numa seqüência
do restauro.
O próprio Talmud indica, com o espírito de síntese peculiar, método e
objetivo. E é o Talmud que vamos seguir agora, nesta busca de uma teoria desse
fazer, em outras palavras, desse ler o mundo. A palavra Shechiná será a palavraguia
neste caso. Shechiná é um termo hebraico e significa residência real, sendo
utilizada para traduzir o intraduzível, entenda-se, a Divina Presença, a imanência
divina, tornando evidentes as insuficiências da linguagem humana para isso, pois
mesmo esse termo, Shechiná, implica uma materialidade, um situar-se inconcebível
em relação a Deus, Aquele que está no mundo mas o mundo não está n’Ele. A luta
dos sábios judeus com o termo e, portanto, a sua retradução evitando, driblando,
tropeçando nos antropomorfismos enerva, revigora o monólogo coletivo do
Talmud e da literatura rabínica de todos os tempos. Como dizer Shechiná ou
Divina Presença e ao mesmo tempo nos livrando e livrando os demais leitorestradutores
da materialidade contida no agora? E ao mesmo tempo livrando-nos e
livrando os demais do mito? Urbach observa que Scholem sublinhou corretamente
a importância de se elucidar esse termo em todas suas ramificações e metamorfoses
na história da religião de Israel e dedica a ele um capítulo em seu livro The Sages
(URBACH, 1979, p. 6). Shechiná não significa o lugar onde a Divindade é
encontrada, isto é, o Lugar de Morada, mas Sua Presença oculta e manifesta. Os
antigos rabinos não conceituam, mas, dentro do procedimento talmúdico,
acrescentam novos aspectos, novas interpretações, novas traduções para o mesmo
termo, ou seja, esse outro nome de Deus Adonai, que é de acordo com o fluir
inapreensível. O que fazer, por exemplo, diante de um versículo como o de número
6, de Êxodo 34, em hebraico: “Vaiaavor Adonai al panav ukra...” Diretamente isto
significa: “E passou o Senhor diante dele e proclamou...” No entanto, o rabino Meir
Matzliah Melamed interpretou assim: “E passou a Divina Presença do Eterno
diante dele e proclamou...” (SÊFER, 2001, p. 266). Para isso, recorreu à tradução
aramaica de Onkelos, que é a seguinte: “Veavar Adonai Shechintê al apohi ukra...”,
ou seja: “E fez passar o Senhor Sua Presença diante dele e proclamou...” É um caso
em que se evita a tradução literal para reduzir ou mesmo afastar a materialidade
sugerida pela cena, algo ignorado na versão de João Ferreira de Almeida e pela
Bíblia de Jerusalém.
Assim percebemos porque um dos rabinos do Talmud é tão incisivo ao
condenar a literalidade na tradução, como lemos em Kidushim, 49A, a respeito de
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quem e como pode ser considerado capaz de ler a Torá em público: “Rabi Iehudá
disse: Ele deve ser capaz de ler e de traduzir. Mesmo se traduzir de acordo com seu
próprio entendimento” – a brecha para o desvio é mal resolvida: “Pois foi ensinado:
Rabi Iehudá disse: Se alguém traduz um versículo literalmente, ele é um mentiroso,
se ele acrescenta à matéria, é um blasfemador e um herege. Então o que se entende
por tradução? Nossa tradução”, ou seja, Onkelos, favorável à paráfrase. Outro
exemplo, apontado em comentário do rabino Hananel sobre o versículo 10 de
Êxodo 24, que diz o seguinte, em hebraico: “Vair-u et Elohei Israel...” De acordo
com o rabino Hananel, quem traduzir a frase por “Eles viram o Deus de Israel”
mente, uma blasfêmia no caso. Melamed traduz para “... e visionaram o Deus de
Israel”, enquanto Onkelos escreveu o seguinte: “Vahazô iat iekar Elaha...”, o que
Melamed ecoa, não por acaso: “E visionaram a majestade do Senhor”. Melamed
usou o termo visionaram, fantasiaram, imaginaram, coerente com o hebraico (o
termo se associa a visões, profecias), em vez de viram, simplesmente. O tradutor
aramaico preferiu termo semelhante, sugerindo como sempre um modo indireto de
apontar que a Divina Presença foi percebida por Israel no deserto, numa visagem e
não num olhar. Atente-se que o rabino, para quem traduzir literalmente até
blasfemar, admite que o eventual leitor da Torá traduza de acordo com o seu
entendimento, pois ainda que, suponhamos, esse entendimento não capte
determinadas nuances de um texto, ele ainda assim será preferível, pois sua
evidente interpretação será movimento e não a paralisia provocada pela palavra
tornada ídolo abominável. Continuando, para reforçar o que diz o rabi Iehudá,
temos outra passagem talmúdica bastante conhecida, na qual descreve-se uma cena
com a participação de Deus, Moisés e o rabi Akiva. Deus estava preocupado em
colocar pequenas coroas nas letras da Torá:
“Disse Moisés: Senhor do Universo, o que prende Tua mão? Ele
respondeu: Surgirá um homem, ao fim de muitas gerações,
chamado Akiva ben Iossef, que explicará cada conjunto de pontos
e cada conjunto de leis. Senhor do Universo, disse Moisés,
permita-me vê-lo. Ele respondeu: Volta-te. Moisés foi e se sentou
atrás de oito filas de bancos (na academia de rabi Akiva). Não
sendo capaz de seguir as discussões deles, ele se sentiu
incomodado, mas quando chegaram a certo tema e os discípulos
perguntaram ao rabi ‘de onde sabes isso?’ e o rabi respondeu, isso
é uma lei transmitida a Moisés no Sinai, ele (Moisés) se sentiu
confortado. Quando retornou à presença do Senhor, bendito seja, e
disse, Senhor do Universo, tens tal homem e concedeste a Torá
por meu intermédio?!” (MENAHOT, 29B)
Quer dizer, o próprio Moisés, na humildade, o traço que sempre o
acompanhou, levando-o a se sentar nos últimos bancos da academia, destinados aos
discípulos menos brilhantes, reconheceu a importância da interpretação abrangentedivergente
de Akiva, rabino segundo o qual mesmo o formato de cada letra
fundando circunstâncias no pergaminho é matéria de análise e recriação para as
A Gagueira de Moisés (Tradução-Criação na Bíblia, no Talmud e no Zohar)
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gerações que se sucedem. A dificuldade na fala de Moisés, que se declara pesado
de boca e de língua, como impedimento para sua incumbência profética (Êxodo,
4:10) não adquire aqui nova conotação, a julgar pela agadá, a breve narrativa
talmúdica? Ele admite não ter percebido que a Torá contém todas as épocas e fala
para todos os homens instaurando-se num devir. A alegada e providencial gagueira
de Moisés exigiu um intérprete, seu porta-voz Aarão – a autoria de segundo grau
torna-se de terceiro grau e assim por diante, remontando à fonte anterior sempre
mais além.
Como nos advertem com sutileza os Capítulos dos Pais, ou Pirkei Avot8
(GUINSBURG, 1968, p. 168) ao sugerir a questão do tempo pela sucessão das
gerações, na primeira mishná: “Moisés recebeu a Torá do Sinai e transmitiu-a a
Josué e Josué aos anciãos e os anciãos aos profetas e os profetas transmitiram-na
aos homens da Grande Assembléia. Estes disseram três coisas: Sêde ponderados
nos vossos julgamentos, formai muitos discípulos e levantai uma cerca em volta da
Torá”. Comumente – a idéia que se segue veio à tona acima e ressurge aqui –
entende-se cerca (siag) por uma barreira em torno da Torá, uma barreira de
proteção para evitar violações. Mas, tendo em conta o fato de que siag significa
sebe, cerca viva que viceja, e ainda, conforme o procedimento rabínico, se em vez
de siag lermos sig, algo que cresce, não poderíamos entender aqui siag, cerca, pela
profusão de idéias que vão surgindo ao redor do texto original, como nos sugerem
visualmente as edições judaicas tradicionais? Ora, e não podemos ver na profusão
dos discípulos pela proximidade entre essa palavra e a palavra cerca um jogo de
termos intercambiáveis? Não seria a continuidade na qual cerca surge como
sinônimo para discípulos, um modo também coerente de se ler “vehaamidu
talmidim harbê vaassu siag laTorá”, “e formai muitos discípulos e levantai uma
cerca em volta da Torá”? Uma cerca, insisto, que em vez de fechar se abre e
expande, sendo ela também parte da Torá viva, o texto-fonte, o vaso recuperável
somente num processo de reconstrução sem fim? Retornando à história de Moisés e
de Akiva, podemos acrescentar que a tarefa do tradutor-intérprete-escritor também
resulta do livre arbítrio, sem vislumbre de recompensa, independente do resultado.
Os riscos estão em aberto. Moisés, como sempre humilde, pergunta a Deus por que,
tendo um rabino como Akiva nas gerações, havia entregue a Torá a ele, no Sinai?
Deus lhe responde que isso pertence ao Seu desígnio, estando portanto fora do
alcance humano. E quando Moisés pergunta sobre o que acontecerá com Akiva, é
apresentada a ele a visão de um homem sacrificado cuja carne está exposta em
ganchos no mercado – acrescente-se: ele tinha sido esfolado vivo. Moisés admite,
como se viu, a sobreposição do intérprete ao hipotético autor original (apenas um
“fantasma”, já que se trata de uma situação espelhada) e se espanta, mas a lição que
recebe é a mesma: o fecho da conclusão representa o estreito limite a ser rompido
pelos homens. O que lhes cabe, deduzimos, é a busca da palavra, ou melhor, das
palavras em sua leitura, escrita e reescrita numa dinâmica distorcida de causa e
efeito simultâneos. A prefiguração disto está no final do Pentateuco, onde se lê:
8 Tratado mishnaico.
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“Assim morreu ali Moisés, servo do Senhor, na terra de Moabe, conforme a palavra
do Senhor” (DEUTERONÔMIO, 34:5). Considerando-se que Moisés redigiu o
texto, como poderia ter narrado a própria morte? A pergunta consta do Talmud,
quando se discute a composição da Bíblia Hebraica. A primeira quebra da idéia da
autoria única é atribuir o relato a Josué. Outra versão: “Será possível que Moisés
morreu tendo escrito e morreu ali Moisés? Mas, até aqui o Santo Bendito Seja disse
e Moisés disse e escreveu, daqui em diante o Santo Bendito Seja disse e Moisés
escreveu com lágrimas..” (BABA BATRÁ, p. 15 A). A comprovação está no final
do versículo discutido, “conforme a palavra do Senhor” – isto é, a revelação não a
um autor, mas a um copista-leitor; Moisés disse (e não a partir de um autor, mas de
um leitor da Torá), entende-se repetiu, pois como vemos no comentário de Rashi a
respeito, “os profetas escrevem da boca do Mestre deles” e o que registram já será
outra versão, como no conto de Borges sobre o homem que reescreveu o Quixote.
Em escala, surgiria a pergunta: quem ditou a Torá consultada por Deus na Criação?
Abaixo, um trecho do prefácio ao Zohar, que coloca a interpretação – ou
entendimento criativo – como o modo de dar continuidade, pela palavra, ao ato
divino em sua reprodução infinita:
“No princípio, Rabi Shimeon abriu: ‘minhas palavras pus na tua
boca’ (Isaías, 51:16). Quanto cabe ao homem se encarregar da
Torá dia e noite! Porque o Santo Bendito Seja Ele ouve a voz
daqueles que se ocupam da Torá. E em toda palavra que se renova
na Torá, através daquele que se encarrega da Torá, faz-se um novo
céu. Aprendemos nessa hora que o texto da Torá renovou-se na
boca do homem. Essa palavra salta e se coloca diante do Santo
Bendito Seja Ele. E o Santo Bendito Seja Ele capta aquela palavra
e a beija e a coroa com setenta coroas desenhadas e gravadas. E a
palavra de sabedoria que se renovou ascende até a cabeça do Justo
Vida do Universo e vaga por setenta mil mundos e sobe até diante
do Ancião9. E todas as palavras do Ancião são palavras de
sabedoria dos mistérios superiores. E aquela palavra coberta da
sabedoria que se renovou vem, quando salta ela se junta àquelas
palavras do Ancião e sobe e desce com elas e ascende aos dezoito
mundos ocultos que o olho não viu a não ser Elohim10. Saem de lá
e voam e vão completas e perfeitas e se colocam diante do Ancião.
Nessa hora o Ancião aprecia aquela palavra e se desvanece com
ela mais do que com qualquer outra. Pega aquela palavra e a coroa
com trezentas e setenta mil coroas e aquela palavra voa e sobe e
desce e se faz um céu. E desse modo toda palavra e palavra de
sabedoria se fazem céus de existência completa perante o Ancião e
ele os chama de novos céus, céus renovados, cobertos do mistério
da sabedoria superior. E todo o restante de palavras da Torá que se
renovam colocam-se perante o Santo Bendito Seja Ele e ascendem
9 Em aramaico, Atik Iomin, referência a um “estágio” da Divindidade.
10 Hebraico, um dos nomes divinos.
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e se fazem mundos de vida. E baixam e são cercadas por uma só
terra e se renova e se faz toda uma terra nova daquela palavra que
se renovou na Torá. E sobre isso está escrito: “Porque como os
firmamentos novos e a terra nova que eu faço permanecem diante
de mim, etc. (Isaías, 66:22)” Fiz não está escrito, mas faço, que é
ato constante daquelas renovações e segredos da Torá. E sobre isso
está escrito: “Minhas palavras pus na tua boca, e na sombra de
Minha mão te protegi, para estender os céus e estabelecer os
fundamentos da terra...” (Isaías, 51:16). O céu não está escrito,
mas um céu. Perguntou o rabi Elazar, o que significa e com a
sombra de Minha mão te protegi?” Disse-lhe: na hora em que foi
entregue a Torá a Moisés vieram várias multidões de anjos para
queimá-lo com a labareda de suas bocas, então o Santo Bendito
Seja Ele o protegeu. E agora que aquela palavra ascende e é
coroada e se coloca diante do Santo Bendito Seja Ele, que protege
aquela palavra e oculta aquele homem, que não saibam a seu
respeito, com exceção do Santo Bendito Seja Ele, e o invejem, até
que se faça daquela palavra um novo céu e uma terra nova. É o que
está escrito, e “na sombra de Minha mão te protegi, para estender
os céus e estabelecer os fundamentos da terra...” Daí que toda
palavra vedada ao olho ascende para um uso superior, como está
escrito: “e na sombra de minha te protegi”. E por que se cobre e se
oculta ao olho? Porque para uso superior, no que está escrito: “e
estabelecer os fundamentos da terra...” como se diz, “e para
proclamar: Tu és Meu povo (ami atá), ó Sion!” (Isaías, 51:16). (...)
Não lê meu povo (ami atá), mas estás comigo (imi atá), para que
sejas um participante junto a mim11”. Assim como por minha
palavra ‘foram criados os céus (Salmos, 33:6)” e a terra, como
dizes, na palavra divina fizeram-se os céus, tu também o fazes.
Dignos de mérito sejam aqueles que se ocupam da Torá.”
(ZOHAR, 1987, v. 1 pp. 13-14)
*
Essa circularidade, essa revolução criativa, só se efetua pela ocorrência do
novo, o tikun, para o qual os caminhos são diversos, tendo em mente que nem
sempre isso se dá de acordo com as normas da regularidade, numa acepção não
restritiva, francamente transgressora. Os movimentos ocorrem tanto na área do
cânone quanto fora dele, inovando para permanecer dentro do cânone, como
rompendo-o de maneira transgressiva. Não vem ao caso entrar nesse novo capítulo
agora. Gostaria apenas de lembrar que no século 20 Auerbach, com “A Cicatriz de
Ulisses” (AUERBACH, 1971, p. 1-20) abriu para a cultura laica e não judaica o
caminho trilhado pelos rabinos há mais de dois milênios, numa seqüência
ininterrupta. O crítico alemão demonstrou como o aspecto lacunar (gago?) do texto
11 Ami-imi – termos homógrafos em hebraico que, como é escrito sem vogais ( ,(עמי
permite a alteração interpretativa. Tradução minha.
Graphos. João Pessoa, Vol 11, N. 2, Dez./2009 – ISSN 1516-1536
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bíblico não refletia uma precariedade literária, mas uma estratégia seguida pelos
redatores, com o objetivo de provocar a interpretação. O texto bíblico é ideológico,
mas não é didático, como já observaram. Uma espécie de máquina de produzir
cultura. Basta lembrarmos a “figura” (AUERBACH, 1997, p. 45 e passim), ou o
tipo e o anti-tipo (FRYE, 2005, pp. 136-171). Na lacuna verbal da Torá, a
possibilidade dada ao homem de participar da criação na palavra divina. O termo
autor, do latim auctor, referia-se, por exemplo, a um general que tivesse
conquistado um território, aumentando o domínio de sua pátria. Auctor é portanto
aquele que aumenta, não Quem cria do nada (ORTEGA Y GASSET, 1991, pp. 54-
55. As paralelas se encontram em algum ponto.
REFERÊNCIAS
AUERBACH, Eric. Figura. São Paulo: Ática 1997.
BARTHES, Roland. Le Bruissement de la langue. Paris: Editions du Seuil, 1992.
FLUSSER, Vilem. Língua e realidade. São Paulo: Herder, 1963.
FRYE, Northrop. O Código dos códigos. São Paulo: Boitempo, 2005.
GUINSBURG, J. (org.). Do estudo e da oração. São Paulo: Perspectiva, 1968.
ORTEGA Y GASSET, José. A Desumanização da arte. São Paulo: Cortez Editora, 1991.
SCHOLEM, Gershon. Cabala. Rio de Janeiro: A. Koogan Editor, 1989.
Literatura religiosa:
Do Talmud foram utilizadas edições da H. Vegshel (Vilna), Steinzalts e Soncino, trad.
inglesa. Foram utilizadas edições do Midrash Rabá (Vilna), com comentários clássicos,
tradução inglesa, da Soncino, Londres, e do Tanhuma, Eshkol, Jerusalém. Do Zohar, foram
utilizadas as edições do Keren Hotsaat Sifrei Rabanei Bavel, Jerusalém, 1987, 5 v., e
Hotsaat Am Olam, Jerusalém, 1965, 3 v. Da Bíblia Hebraica, a Stuttgartensia, 1999, a
Bíblia de Jerusalém, a tradução de João Ferreira de Almeida (fiel), Sociedade Bíblica
Trinitariana do Brasil, SP, 2004, A Lei de Moisés (Pentateuco), trad. Matzliah Melamed,
Congregação Religiosa Israelita Beht-El, Rio, 3ª. ed., idem (A Lei de Moisés), Sêfer, SP,
2001, a Bíblia Hebraica, trad. David Gorodovits e Jairo Fridlin, Sêfer, 2006. Sêfer Ietsirá,
Mossad haRav Mordechai Atia, com comentários clássicos, Jerusalém, 1965.
Dicionário:
Kabbalah Dictionary, Rabino Raphael Afilalo, impresso nos EUA, ed. autor.
[Recebido em 08∕06∕2009
e aceito para publicação em 19∕09∕2009]

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